Artigo: De tratorista a gestor de máquinas

Por Ricardo Ralisch

Mecanização é a tecnologia agrícola mais antiga e longeva

Enquanto muitas outras tecnologias agrícolas nasceram e morreram no curso de evolução das práticas agropecuárias, a mecanização nasceu praticamente junto com a agricultura e a acompanhará por toda a sua história, evoluindo e se adequando às diferentes necessidades. A mecanização está presente em todas as atividades agropecuárias e atua em praticamente todas as etapas do processo de produção. Se há máquina, há quem a opere, representado hoje pelo tratorista. Vejamos neste texto como tem evoluído esta atividade e qual é a novidade que se aproxima rapidamente.

Como tecnologia, a mecanização é indutora de avanços e se empregada como tal se torna precursora das demais tecnologias que se adaptam à evolução dos sistemas de produção agropecuário. Porém, raramente estes avanços tecnológicos na mecanização foram frutos de estratégias ou políticas específicas, como ocorreu com a sua introdução no Brasil em 1959. Frequentemente se tratou de uma evolução definida pelo mercado e pela demanda, de caráter espontâneo do setor. E nesta evolução, trataremos aqui como vem se comportando um componente importante das máquinas, os operadores.

Primórdios da mecanização

No início, com uma agricultura essencialmente manual, eram as ferramentas rudimentares que auxiliavam os agricultores a intensificar sua produção. Um avanço claro aconteceu com a domesticação de animais para atuarem como fontes de potência. Considera-se que isto tenha acontecido por volta dos 5 mil anos a.C. Apesar da rusticidade das ferramentas, deve ter sido um avanço significativo e imagina-se que passou a existir pessoas que tinham mais facilidade com a lida destes animais. Esta habilidade deve ter sido valorizada e supomos que este pode ter sido a primeira “profissão” da agricultura ou, quem sabe, algo como uma prestação de serviços. Ainda no campo da suposição, imagina-se que tenha havido pessoas hábeis com os animais, mas que, eventualmente, não exerciam atividades na agricultura portanto, dependiam de instruções para conduzir os animais para estes realizassem o serviço pretendido. Se esta suposição for crível, pode-se atribuir a este contexto e momento o surgimento da figura do operador agrícola e que não era necessariamente o gestor da atividade. Uma pessoa opera e outra define o que deve ser feito, a gestora.

Tração animal

Os animais como fonte de potência tiveram ampla utilização na agricultura e evoluíram de forma significativa, trazendo grandes contribuições para o desenvolvimento da agricultura. Como tecnologia, esta alternativa teve um grande salto na idade do ferro, por volta do ano 1.200 a.C. e o surgimento das ferramentas. Destaca-se destas ferramentas o arado, que surgiu na China entre os anos 1.000 e 800 a.C. e que passou a ser amplamente empregado nas áreas agrícolas do velho mundo,  representando até hoje a agricultura genericamente e a mecanização mais especificamente, como pode ser observado na logo da Engenharia Agronômica adotada no Brasil, cuja área de ciência iniciou em 1859 e é representada por um círculo formado por cabeçalhos dos arados à tração animal.

A tração animal evoluiu e ainda tem grande potencial de emprego em regiões de baixa aptidão agrícola ou de baixo poder creditício, não sendo, portanto, uma tecnologia ultrapassada. Em algumas realidades fundiárias e sociais é a melhor alternativa para se intensificar a agricultura, com grande impacto positivo nos aspectos sociais e econômicos, reduzido impacto negativo ambiental. 

A lida com os animais exige uma habilidade específica dos operadores, mas como esta tecnologia se consolidou numa realidade temporal em que os agricultores exploravam uma área de dimensões compatíveis com o tamanho das famílias, se tornou comum que a condução destas operações passasse a ser realizada pelo próprio produtor. A necessidade do trabalho de terceiros nestas operações passou a ser mais comum quando se trabalhava em operações de maior demanda de potência e se adotavam maiores quantidades de animais, seja individualmente multiplicando os conjuntos animal e implemento, seja nas parelhas com muitos animais. Isto foi comum na Europa no final do século XIX, quando houve a intensificação e a expansão territorial da agricultura. Porém, mesmo atuando com pessoas de fora das famílias para aumentar a capacidade de trabalho, isto era feito juntamente com os produtores, envolvidos diretamente nas operações, que definiam os parâmetros das operações, que eram pouco variáveis, ou seja, não se tinham muitos aspectos a ser considerados nas operações, pois os implementos não dispunham de muitos recursos e a fonte de potência, os animais, tem um comportamento uniforme, respectivo a cada espécie e indivíduo. Neste cenário a atuação de operadores e gestores da atividade se confundiam e eram exercidas pelas mesmas pessoas, o que perdurou por séculos.

Motores de combustão

Foi justamente esta demanda por mais potência na agricultura europeia do final do Século XIX que levou a invenção da máquina agrícola à vapor, baseado nas locomotivas que já tinham praticamente 100 anos. 

Imaginem o impacto causado por esta introdução na agricultura, quanto a potência disponível, mas principalmente quanto às habilidades necessárias para se operar com uma máquina à vapor. É necessário se preocupar com a caldeira, com a cremalheira, com a lenha, com o vapor e com as pressões, além de conduzir e verificar a operação propriamente dita. Surgiu a necessidade do maquinista. O maquinista cuida da máquina, mas quem cuida da operação ou do que a máquina está fazendo? Em geral o agricultor, ressurgindo o papel do gestor. Nesta circunstância a intenção do gestor ficava entre o que deseja fazer e o que o maquinista dizia ser possível. Ou seja, o parâmetro de qualidade da operação agrícola passou a ser mais do que a fonte de potência poderia fazer, do que aquilo que o agricultor pretendia. A máquina ditava as regras e a figura do maquinista assume uma grande importância.

Trator

A máquina à vapor teve uma vida curta, felizmente. Em 1906 surge o trator, empregando o recém inventado motor de combustão interna, tornando-o mais seguro, versátil e eficiente. 

Apesar de menor complexidade quando se compara com a máquina à vapor, o trator também trouxe uma profunda alteração de manuseio frente à tração animal. Muitos agricultores viram o trator antes de verem o carro. Imaginem saber da necessidade de usar acelerador, volante para direcionar, embreagem, alavanca de câmbio, regular a mistura de combustão e o ponto de ignição, dispositivos existentes nos veículos antigos. Era muita atenção a ser dada à condução dos tratores e pouca ao serviço propriamente dito. Ressurge a figura do condutor da máquina, aqueles que se habituaram com esta novidade e com estes comandos. Esta figura é precursora do operador agrícola, o tratorista, que foi se consolidando conforme os tratores e os implementos agrícolas foram evoluindo.

O surgimento dos tratores abriu um enorme leque de oportunidades de operações agrícolas a serem realizadas, além das rudimentares operações de preparo de solo realizado nos primórdios da motomecanização. Para o preparo de solo, uma ampla gama de implementos foi sendo concebida, tanto para preparo primário como para preparo secundário. Da mesma forma foram se ampliando as opções para implantação das culturas, para cultivos e tratos culturais e para as colheitas. Cada implemento ou equipamento possuindo suas especificidades e recomendações de emprego, incorporando ao setor de mecanização agrícola uma necessidade de contínua informação e capacitação dos interessados, que passou a ser direcionada aos operadores, que neste estágio se consolidou como uma função específica nas propriedades agrícolas, surgindo o tratorista, ou operador agrícola. 

Tratorista nas diferentes realidades

Há propriedades agrícolas em que as operações agrícolas são realizadas pelo agricultor ou por membros de sua família. Isto é muito comum na agricultura familiar e na agricultura empresarial de pequena escala, onde os produtores compartilham as operações agrícolas com funcionários. Nestes casos, a operação envolve tanto a condução da máquina como a observação do serviço realizado, que chamamos aqui de gestão da operação, pois é feita por quem tem a decisão do que fazer, como e quando. Esta ação de gerenciar uma operação agrícola só se encerra, teoricamente, ao avaliar o resultado da operação realizada e que distância os resultados ficaram da intenção inicial. Nestas situações as figuras do tratorista e do gestor se fundem nume mesma pessoa.

Há os outros casos em que a operação dos equipamentos agrícolas é feita por tratorista, que não gerenciam a atividade e as operações. É comum na agricultura empresarial de grande escala e nas de pequena escala em que os agricultores optam por não atuarem na operação. Estes são os casos típicos que empregam os tratoristas.

Por um período de 8 anos mantivemos um centro de treinamento de operadores de tratores agrícolas na Universidade Estadual de Londrina, onde tivemos a oportunidade de conviver com tratoristas, contratados para tal e com agricultores operadores de máquinas agrícolas. O centro de treinamento era voltado aos tratoristas, ou seja, sem intenção de capacitar a tomar a decisão por qual operação fazer, em função da necessidade no campo. Mas sim de torná-los aptos a realizarem a operação determinada por outras pessoas ou situação, da melhor forma possível.

Este convívio mostrou claramente que na ocasião, entre o início da década de 1990 e meados da década de 2000, havia uma clara distinção de atuação entre os tratoristas e os gestores. Foram frequentes as manifestações de tratorista que discordavam das orientações recebidos dos gestores, mas que executavam o definido, por não terem espaço para opinar. Os tratoristas têm uma posição privilegiada de visualização da fazenda e os mais observadores relataram a inadequação de algumas das decisões dos gestores, por irem pouco ao campo. Em trabalhos de avaliação dos impactos dos sistemas de produção, convivemos com inúmeros agricultores para entender a lógica empregada na gestão das suas atividades e constatamos que é muito comum que a atribuição de operação das máquinas é dada aos tratoristas pela ampliação da complexidade dos equipamentos agrícolas, com inúmeras regulagens e possibilidades. Desta forma os gestores, ou agricultores, deixavam de se responsabilizar por acompanhar esta evolução, voltando a atenção à gestão da atividade. Por algum motivo não esclarecido nestes estudos, esta situação coincidiu com um comportamento dos gestores de afastarem os tratoristas das definições das operações e da atividade. 

O oposto disto observamos nos agricultores operadores de máquinas, pois atuam como gestores e tratorista simultaneamente, tendo mais vivência com a realidade encontrada e tomando as melhores decisões. Nos parece importante envolver os tratoristas, e demais funcionários, na atividade de gestão da atividade pela vivência que eles tem no campo.

Tratoristas ou gestores?

Atualmente, as máquinas instrumentadas eletronicamente permitem aos tratoristas acompanharem melhor aspectos operacionais e do trabalho sendo realizado, ampliando seu envolvimento nestas operações. Estas informações sendo levadas em tempo real aos gestores permitem um maior envolvimento do gestor com a operação e agiliza a tomada de decisões mais realistas. Outra consequência frequentemente encontrada nas operações realizadas com equipamentos monitorados, foi a constatação de ocorrência frequente de falhas operacionais de cunho humano, mesmo com operadores experientes. Muitas são as causas possíveis para tais falhas, mas uma muito comum é o cansaço, comum nas épocas de safras.

Este avanço da eletrônica embarcada também coincidiu com uma nova postura dos gestores, ampliando a participação dos tratoristas e demais funcionários na gestão, fato positivo.

Outro grande avanço recente nas máquinas e equipamentos agrícolas foi a telemetria, o que praticamente coloca o gestor dentro da cabine da máquina, permitindo interferir na operação durante sua execução, minimizando os efeitos dos erros operacionais, favorecendo a operação e auxiliando na gestão.

Estes recursos aproximam o gestor do tratorista e devem ser empregados justamente para valorizar e reconhecer os bons exemplos. Ainda há uma carência de capacitação dos gestores para empregar todo o potencial da telemetria agrícola, pois também requer uma nova postura destas pessoas que gerenciam as operações agrícolas.  

Perspectivas para o futuro

O piloto automático nas máquinas agrícolas já uma realidade para algumas operações e alguns equipamentos, dentro do que se chama de Agro 4.0. A tendência é que as tecnologias de base digital se tornem cada vez mais acessíveis, chegando nos equipamentos de médio e pequenos portes.

Isto elevou os tratoristas a outro patamar, já que se desvencilharam de uma parte importante da operação que é a condução da máquina no local adequado. Devem voltar mais atenção aos demais componentes da operação agrícola que são o desempenho e a qualidade operacional. 

Aos gestores nestes casos, competem monitorar todas as informações disponíveis para que optem pela melhor operação e para que se certifiquem de que as decisões tomadas foram as mais adequadas. Para isto, sugere-se que envolvam os tratoristas nestas análises e decisões, para aproveitar a vivência de campo deles, como já comentado acima.

Já temos no mercado as máquinas autônomas. Restritas ainda, mas com grandes chances de evoluírem rapidamente para as mais diversas operações agrícolas. Máquinas autônomas são aquelas que operam sem tratoristas. 

Os gestores passam a assumir toda a responsabilidade pela operação e as falhas passam a ser mais decorrente do planejamento do que operacional. Esta ação demandará mais gente e será para onde deverão migrar boa parte dos tratoristas. Hoje ainda é exigido que haja uma pessoa na cabine de comando da máquina, mesmo autônomas, mas num futuro bem próximo teremos os tratoristas e os gestores dividindo uma mesma sala, programando e executando as operações agrícolas à distância, mas em tempo real.

Que nos preparemos para este cenário, mas sem perder a atenção no estágio atual de cada propriedade agrícola. Fiquem bem e boa safra!

Prof. Dr. Ricardo Ralisch é do Depto. Agronomia da Universidade Estadual de Londrina

 

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