Máquinas e Inovações Agrícolas

José Graziano: Brasil precisa parar de produzir commodities

Por Clarisse Souza

A cada ano o Brasil registra recordes nas safras agrícolas. Ano passado, mesmo com a pandemia, não foi diferente. O agronegócio manteve seu patamar e contribuiu para diminuir o rombo na economia brasileira, com aumento nas exportações. Em meio a este cenário promissor, uma realidade volta assombrar o País: a fome. Cerca de 10,3 milhões de brasileiros não têm acesso à alimentação básica, segundo o IBGE. Por causa da Covid-19, mais 3,4 milhões devem se somar a este número em 2021. 

O ex-diretor geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), José Graziano da Silva, explica porque essa conta não fecha. Segundo ele, o problema do Brasil não é a falta de alimentos. “Ao contrário, temos excesso de produção (commodities) e precisamos de uma política que organize nossa produção”. Por causa da alta produção no Brasil e no mundo, ele acha totalmente possível erradicar a fome até 2025, conforme meta da FAO. Para isso, ele explica, é preciso haver uma política de governo e apoio da sociedade, dando prioridade ao combate à fome. 

Graziano da Silva possui mais de 30 anos de conhecimento acadêmico, profissional e político em questões relacionadas à segurança alimentar e ao desenvolvimento rural. Atuou como diretor-geral da FAO de 2012 a 2019, quando implementou a experiência acumulada com o programa Fome Zero no Brasil. O programa foi concebido por Graziano, que também liderou sua implementação enquanto Ministro Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome, em 2003. Em 2020, criou o Instituto Fome Zero. Acompanhe. 

Levantamento feito pelo IBGE apontou que a fome voltou a se alastrar pelo Brasil. A que o sr. atribui esse retrocesso?

Basicamente à crise econômica que se acentuou desde 2015. Lembrando que, sem crescer, o País não gera empregos. Deve-se sobretudo ao aumento no número de pessoas desempregadas, subempregadas ou no mercado informal, com salários que não permitem sequer comprar uma cesta básica, a um aumento da concentração de renda e da propriedade da terra. As pessoas não têm, especialmente no campo, onde a miséria é maior, acesso à terra para produzir seus próprios alimentos. A falta de uma infraestrutura pública, por exemplo, com estoques de alimentos, dá no que se viu agora: uma hora sobra arroz e outra hora falta arroz, tem que importar. Causa ainda a subida exorbitante do preço do feijão, em plena safra, durante a pandemia.

Por que o acesso à alimentação ainda é tão desigual no Brasil?

A alimentação no Brasil é um problema de acesso, não de falta de alimentos. As pessoas não podem comprar os alimentos, não têm dinheiro para tal, essa é a razão básica da fome no Brasil. A desigualdade da distribuição da renda no Brasil é o que explica a desigualdade no acesso à alimentação. No Nordeste existem mais pessoas miseráveis, desempregadas, subempregadas, recebendo salários informais muito baixos, salários rurais muito baixos e também há desigualdade na infraestrutura da rede de alimentos, como na rede varejista, por exemplo. 

Apesar dos recordes anuais nas safras agrícolas, o país não tem comida para todos…

Como falei, a fome não é um problema de produzir alimentos, é sobre ter acesso aos alimentos e o Brasil tem uma peculiaridade de produzir muitas commodities para exportação. Essas commodities sobram hoje no mundo, no mercado internacional inclusive. O que falta não são commodities, o que faltam são frutas, verduras, legumes, produtos derivados de origem animal como carne, ovos e leite. Os recordes que nós temos produzido são basicamente da soja, milho e arroz. Não há uma política de segurança alimentar e nutricional que mantenha estoques reguladores, como existia anteriormente nos governos Lula e Dilma. 

O País ainda é vulnerável em relação à segurança alimentar?

O Brasil está voltando ao Mapa da Fome, o que é um caso raríssimo. Eu não saberia dizer outro país que, uma vez erradicada a fome, voltou a ela em tão pouco tempo: levamos 10 anos para sair e em cinco anos estamos de volta, em um país que exporta alimentos para o mundo todo, por falta de uma política de segurança alimentar e nutricional que seja de Estado e não de governo, que não mude a cada novo governo. O melhor exemplo é a merenda escolar: entra governo, sai governo, as crianças têm a sua refeição garantida, uma refeição de qualidade com compras da agricultura familiar, de produtos frescos. Isso é uma política de  segurança alimentar e nutricional, que falta no Brasil e a maioria dos países do mundo tem, uma política de Estado. 

Quais foram os impactos da pandemia de Covid-19?

O impacto foi basicamente sobre o mercado de trabalho. Aumentou o número de pessoas sem renda, sem trabalho, e a gente sabe que grande parte da população brasileira vive, como se costuma dizer, “da mão para a boca”: o que se produz é o que se come. Se a pessoa não trabalha naquele dia, não come. Os números do IBGE, de 2018, são anteriores à pandemia e já apontavam quase 5% da população passando fome, hoje a estimativa é maior. Estimo que estejamos com 7 ou 8% da população passando fome no Brasil, podendo esse número crescer ainda mais. As estimativas apontam agora que se realmente não se renovar o auxílio emergencial em 2021, cerca de 3 a 4 milhões de pessoas poderão engrossar esse contingente de miseráveis no Brasil, e isso jogaria os números da fome acima de 15 milhões ou mais. No mundo são mais de 150 milhões de pessoas que foram jogadas na miséria por conta da pandemia; se a pandemia se prorrogar, como indica essa segunda onda, e ocorrer o atraso da vacinação, nós poderemos ver esse número de famintos no mundo voltar a um bilhão de pessoas, como era no início do século. E o Brasil, que já voltou ao mapa da fome, poderá viver uma situação catastrófica. 

Como enfrentar esse problema?

Se não for possível ter um auxílio emergencial ainda que seja mais focalizado, com um cadastro melhor, o que se tem a fazer é melhorar e ampliar o Bolsa Família, para que ele possa cobrir as lacunas que têm hoje. Basicamente seria necessário aumentar o valor do Bolsa Família (os valores atuais são muito baixos não permitem as pessoas se alimentarem dignamente) e ampliar a cobertura: estamos deixando muita gente de fora do bolsa família porque estão no mercado informal, com empregos instáveis, principalmente mulheres que são chefes de família. O grande problema que tivemos no auxílio emergencial foram as falcatruas, as pessoas que receberam sem ter merecimento. Não é fácil saber quem passa fome, não é fácil ter um cadastro, uma lista de pessoas com nome e endereço para saber encontrar essas pessoas. Ampliar o Bolsa Família é referendar uma grande conquista da sociedade brasileira, que encontrou um modelo de redistribuição, de transferência de renda simples e eficaz; e é muito barato pelos benefícios que traz.

Em um compromisso internacional, estabeleceu-se a meta de erradicar a fome no mundo até 2025. É possível alcançar esse objetivo, mesmo com a pandemia? 

Eu acho perfeitamente possível erradicar a fome até 2025, se houver decisão política de um governo e apoio político da sociedade dando prioridade ao combate à fome. O Brasil não passa pelo problema de outros países, que estão enfrentando dificuldade de adquirir alimentos durante a pandemia. Nós, pelo contrário, temos excesso de produção e precisamos de uma política que organize essa nossa produção. Eu diria também que um Fome Zero agora, em 2021, tem que dar uma atenção especial à obesidade. O crescimento da obesidade no Brasil é assustador, especialmente a obesidade infantil. A obesidade passando de geração para geração é um problema mais complexo que a fome. Para isso precisam ter políticas de educação alimentar, etiquetar os alimentos para evitar o consumo de alimentos com muito açúcar, muito sal, gorduras trans, e um programa de defesa dos consumidores que limite a propaganda desses alimentos ultraprocessados, falsa comida, para as crianças.  

Em 2020, em meio à pandemia, o senhor criou o Instituto Fome Zero. Qual o propósito do Instituto?

O propósito do Instituto Fome Zero é manter acesa a ideia, a chama da erradicação da fome. A ideia de que é possível erradicar a fome mesmo no meio dessa pandemia. Mesmo no meio dessas circunstâncias que estamos vivendo. Muita gente começa a fraquejar, dizer não vai dar, melhor adiar a data de 2030, melhor reduzir a meta à metade. Eu sempre digo àqueles que propõem reduzir a fome à metade: o que nós vamos dizer à outra metade? Para a fome, o único número aceitável é zero. O programa fome zero foi baseado nesse princípio. De que é possível erradicar a fome e que não há outra alternativa, não há um plano B para a fome. 

Como tornar a agricultura sustentável e acessível a todos?

Eu diria que há várias condições, mas vou me debruçar sobre uma delas que me preocupa muito como agrônomo, filho de agrônomo, que tem um filho agrônomo. A revolução verde, que nasceu no século passado, nos anos 60/70, evitou que o mundo passasse por uma nova crise Malthusiana. Nos anos 70 se previa uma grande fome, uma “famine”, como se costuma definir conceitualmente, na África e na Ásia; e isso foi evitado graças à revolução verde. Essa revolução agrícola tirou o mundo da fome e deu o Nobel da paz ao agrônomo Norman Borlaug, em 1970. O Brasil tem várias iniciativas, nesse sentido, uma delas que eu gostaria de destacar, comemorando o centenário da professora Primavesi, é a da agroecologia, que tem se mostrado uma tecnologia eficiente, que permite a produção de alimentos saudáveis de forma sustentável. O Brasil como país tropical tem necessidade de proteger melhor o seu solo se não quiser enfrentar um processo de desertificação como já estamos vendo em muitas partes do País, inclusive no sul do Pará, na pré-Amazônia.

*Entrevista realizada em 15/01/2021
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