Tratores autônomos: mais tecnologia, menos condutores

A incorporação de inteligência artificial e Internet das coisas na agricultura tem ajudado a moldar o futuro dos tratores autônomos. Apesar de muitos entraves, mercado tem tudo para continuar avançando

Tratores autônomos: mais tecnologia, menos condutorespor Ana Machado – O mercado global de equipamentos agrícolas autônomos deve crescer a uma taxa anual de quase 10% até 2031, quando alcançará o valor de US$ 150 bilhões. A estimativa faz parte de um relatório lançado recentemente pela agência de pesquisa e consultoria de mercado Fact.Mr, que aponta os maquinários autônomos, como os tratores autônomos, como altamente eficientes na economia de tempo, custo de produção, monitoramento de safras e análises de solo – fatores que vão justamente ao encontro das necessidades atuais do agronegócio.

De maneira geral, a robótica e a automação estão em alta e não é apenas na agricultura. Segundo um levantamento global da AgFounder, empresa de capital de risco de foodtech e agtech: indústrias de diversos setores econômicos investiram US$ 198 milhões em robótica em 2019, ao passo que, em 2020, esse valor saltou para US$ 305 milhões, o que representa uma alta de mais de 54%. Esse montante fica ainda mais impressionante se considerar que essa expansão se deu justamente no primeiro ano da pandemia de Covid-19, quando a maior parte das empresas congelou investimentos.

A pergunta que fica é: o que tem feito os investidores enxergarem um caminho tão próspero na automação e na robótica? Uma das possíveis respostas é a chegada e expansão da tecnologia 5G, que vai permitir grandes avanços no que diz respeito à Internet das Coisas (IoT), bem como o avanço dos estudos relacionados à Inteligência Artificial. 

Devido às possibilidades de ganhos operacionais, a indústria de máquinas agrícolas está acompanhando essa tendência global e um dos carros-chefes nesse sentido são os tratores autônomos.

Níveis de automação

Antes de mais nada, é preciso dizer que existem três grandes grupos de tratores: os convencionais, operados totalmente por seres humanos; os semiautônomos, equipados com sistemas automatizados, mas que ainda necessitam de seres humanos para sua operação; e tratores 100% autônomos, que são programados previamente e depois dispensam o trabalho humano por completo, inclusive com inteligência artificial para tomadas de decisão em tempo real.

O grande diferencial, portanto, é a possibilidade de colher dados, trocá-los com outros sistemas e processá-los para agir de imediato. Um exemplo prático: em função das condições de solo e trafegabilidade, o trator autônomo consegue mudar sua própria velocidade, se adaptando ao terreno e sem interferência humana.

“No mercado já existem equipamentos que coletam informações, mas não em tempo real. Geralmente, há a coleta, o armazenamento e é necessário que uma pessoa acesse esse backup, leve os dados para a sede da fazenda, faça o processamento e análise para só então tomar determinadas providências a partir do que foi observado. Com tratores autônomos, isso muda radicalmente”, afirma o professor Roberto Lilles, do Núcleo de Inovação em Máquinas e Equipamentos Agrícolas da Universidade Federal de Pelotas (NIMEq/UFPel). Conforme o pesquisador, esse tipo de tecnologia exige até mesmo uma nova postura dos produtores. Como os tratores autônomos coletam muitos dados e cruzam informações, será necessário um trabalho de gestão mais qualificado e estratégico.

Em paralelo, os veículos autônomos trazem diversas vantagens, tais como o controle de tráfego; eficiência operacional em relação à manobra, inclusive nas cabeceiras das culturas; uso 24 horas por dia; integração das operações automatizadas sob uma mesma base de dados; redução de tempo e custo do trabalho e maior eficiência ao eliminar erros humanos na operação etc.

Tratores autônomos: barreiras a superar

Tratores autônomos: mais tecnologia, menos condutoresNa rasteira dos benefícios, vem também muitos entraves que têm dificultado a adoção desse tipo de equipamento em grande escala. “A maior dificuldade de todas é a variabilidade espacial dos solos agrícolas. Obviamente não há nenhum solo agrícola perfeito. Mas, no Brasil, nós temos poucas áreas planas que oferecem as condições ideais de trabalho para tratores autônomos. As que mais se aproximam são os chapadões no Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais e até mesmo em São Paulo. Esse tipo de característica é relevante porque a declividade e a rugosidade do solo influenciam diretamente no resultado dos veículos autônomos. Dessa forma, eles precisam ser equipados com outros tipos de sensores, muito mais sofisticados, que aumentam o custo final da máquina”, explica Kleber Lanças, professor titular de Mecânica Aplicada do Departamento de Engenharia Rural da Faculdade de Ciências Agronômicas da UNESP.

Além desse ponto, há questões ligadas à baixa conectividade no campo. Afinal, a essência de um trator autônomo é justamente a comunicação de forma remota e integrada com outros sistemas, o que exige, por exemplo, uma boa cobertura de internet. Para quem já está contando com a chegada do 5G ao País, o presidente da Associação Brasileira de Agricultura de Precisão (AsBraAP), Marcos Ferraz, dá um recado: “Uma coisa importante a ressaltar é que o 5G, apesar de ser muito mais rápido na transmissão de dados, tem uma distância de alcance muito menor. Isso faz com que, atualmente, não seja a internet que o agro necessita. Por enquanto, o ideal mesmo é investir primeiro em conectar as áreas rurais descobertas de acesso, seja com ondas mais longas, transmissão via satélite ou mesmo expandir o alcance do 3G e do 4G”.

Quanto a isso, a chegada do 5G realmente tende a beneficiar as coberturas do 3G e do 4G, já que uma das prerrogativas do edital de concorrência aberto pelo governo federal inclui a ampliação da quantidade de torres de telecomunicação por parte das operadoras.

Um desafio bem mais complexo para os tratores autônomos está ligado à falta de uma legislação específica para delimitar e orientar as diversas situações que podem ocorrer durante seu uso, inclusive aquelas ligadas à segurança. “Em caso de um acidente que cause uma lesão a uma pessoa ou um dano material à propriedade, de quem é a culpa? É do dono da máquina, do fabricante ou de um terceiro que programou o sistema?”, questiona o professor Lilles.

Na visão do presidente da AsBraAP, que é engenheiro agrônomo e atua como consultor na área de inovação e tecnologia agrícola, o Brasil precisa primeiro resolver outras prioridades. “Há gargalos de baixa eficiência na pulverização, muitas vezes feita em condições climáticas desfavoráveis ou em doses inadequadas. É possível citar também a falta de mapeamento de solo em muitas regiões”, afirma. Segundo ele, esses são apenas dois exemplos básicos de como ainda há muito a evoluir.

A urgência da qualificação

Fora todas essas questões, Ferraz aponta um outro grande desafio relacionado à capacitação técnica para o uso de tratores autônomos. Segundo ele, há um excesso de informação e desinformação que faz com que os agricultores enxerguem as coisas de maneira equivocada e isso dificulta o alinhamento das expectativas em relação a novas tecnologias.

“Nosso objetivo como associação tem sido juntar todos os elos, ou seja, a academia, com estudos sobre essa temática; as empresas fabricantes, que também estão pesquisando e fornecendo novas tecnologias; bem como o público de interesse, especialmente estudantes, fazendas e cooperativas. Juntando todos para conversar, queremos diminuir o distanciamento entre a pesquisa e a aplicação”, explica o engenheiro.

Para isso, a entidade tem promovido workshops, congressos, simpósios e demais eventos. Inclusive, o próximo Congresso de Agricultura de Precisão, que acontecerá em agosto deste ano, tem em sua programação a discussão sobre robótica, com dois palestrantes convidados.

“A área de Agricultura de Precisão ainda necessita de muita difusão, treinamento e capacitação. Como tem muitos aspectos da robótica que estão relacionados aos preceitos da Agricultura de Precisão, tais como inteligência artificial, rastreabilidade, sistemas de orientação GPS, por exemplo, colocamos tudo em um ‘pacote’ para mostrar para o produtor que são muitas tecnologias e que a robótica é apenas uma delas. Dessa forma, quando essas inovações estiverem mais disponíveis, as pessoas vão conseguir realmente trabalhar com elas”, detalha Ferraz.

A corrida para a automação na agricultura familiar

O Programa de Pós-Graduação em Sistemas de Produção Agrícola Familiar realizado na Faculdade de Agronomia da Universidade Federal de Pelotas tem desenvolvido projetos de pesquisa relacionados à ergonomia, mecanização de atividades manuais e, mais recentemente, a sistemas automatizados voltados especificamente à agricultura familiar.

“Sabemos que há uma carência de equipamentos que atendam essa parcela da população e, se a questão da automação é complexa até para os médios e grandes produtores, imagine para agricultores familiares. Foi por isso que já começamos a estudar melhor essa área, pensando em analisar as condições e características básicas desse tipo de propriedade, bem como sua relação com esses equipamentos, para formar uma base de conhecimento voltada às especificidades das atividades agrícolas em pequena escala”, explica o professor Roberto Lilles, do Núcleo de Inovação em Máquinas e Equipamentos Agrícolas (NIMEq/UFPel).

Segundo ele, nos últimos anos, o programa iniciou conversas com outros pesquisadores, inclusive de outras universidades, que têm trabalhado com robótica, automação e até mesmo profissionais da área de computação que estão direcionando suas pesquisas para área agrícola. Esse intercâmbio de conhecimento tem permitido o desenvolvimento de grupos de pesquisa multidisciplinares e o resultado disso é que, ao menos na área acadêmica, a agricultura familiar não tem sido deixada de lado.

“Em fevereiro deste ano, um orientando meu defendeu uma dissertação de mestrado sob o título ‘Desenvolvimento de um veículo autônomo e elétrico para uso em atividades agrícolas de escala familiar’. O objetivo desse trabalho foi projetar conceitualmente um veículo autônomo de plataforma multitarefa, com fonte de potência elétrica e possibilidade de adaptação futura para diferentes tipos de equipamentos agrícolas que atendam principalmente as propriedades de agricultura familiar”, destaca o professor.

Por enquanto, o projeto é apenas conceitual, embora já tenha o desenho e o que deve compor esse equipamento autônomo. De acordo com Lilles, a escassez de recursos voltados à ciência e à pesquisa no território brasileiro atualmente tem dificultado o avanço do desenvolvimento de um protótipo. “Fora isso, esse estudo já nos deu bastante conhecimento a respeito de quais serão as dificuldades para o desenvolvimento desse tipo de máquina. Esperamos que logo a gente consiga recursos, inclusive por meio de parcerias com empresas interessadas, para finalmente termos um protótipo e iniciar os testes – o que vai nos ajudar a descobrir mais coisas”, pontua o pesquisador.

Além desse primeiro estudo, há expectativas de que novos projetos surjam, inclusive com mais interação entre engenheiros de computação e mecatrônica, bem como engenheiros agrícolas e agrônomos. “Mesmo que seja ainda um sonho distante usar um trator autônomo em uma propriedade familiar, algo que talvez a gente consiga só daqui a uns 20 ou 30 anos, é preciso dar o primeiro passo e foi isso o que nos motivou a começar estudar o tema”, relembra Lilles.

O que está por vir

Tudo indica que a implementação do trator elétrico é uma inovação que vai se dá de maneira muito mais rápida que os tratores autônomos, segundo o professor Kleber Lanças, da FCA/Unesp. “Como participo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD), sei que há subgrupos de engenheiros estudando os dois tipos de tratores, mas as pesquisas em relação aos tratores elétricos estão muito mais avançadas. Temos registros de testes na Europa, Estados Unidos, Índia, Turquia e com certeza o Brasil será agraciado com isso logo mais. Já no caso dos tratores autônomos, o que temos são protótipos, geralmente testados por fabricantes e sem muito alarde”, esclarece o pesquisador.

Segundo Douglas Felix Silva, que é gerente de vendas das divisões de Veículos Comerciais e Tecnologia Industrial da ZF América do Sul, o Brasil já tem esse tipo de tecnologia por aqui, mas ainda em níveis muito baixos e geralmente em caráter de teste. “Continua-se investindo nisso, no entanto, é necessário acompanhar o que o mercado coloca aos clientes, especialmente sobre o que tem sido oferecido em termos de máquinas e quais as tecnologias disponibilizadas. Temos visto uma grande demanda por transmissões continuamente variáveis, máquinas que permitam maior produtividade e baixo consumo, e até mesmo tendências de eletrificação. Já em relação à máquina ser totalmente autônoma, provavelmente será uma demanda que levará mais tempo”, explica o executivo.

Até o momento, o modelo mais futurista e alinhado a questões ambientais vem da China, que anunciou no ano passado um trator autônomo, elétrico e já preparado para a tecnologia 5G. O equipamento foi desenvolvido no Instituto Nacional de Inovação e Criação de Máquinas Agrícolas (CHIAIC) em parceria com o Instituto de Pesquisa de Equipamentos Avançados de Tianjin, ligado à Universidade Tsinghua.

A máquina, de tração 4×4, possui um motor médio síncrono central que impulsiona as duas rodas traseiras, enquanto cada roda dianteira tem seu próprio motor elétrico independente. O grande diferencial é que o trator possui células de combustível de hidrogênio que são ativadas quando o veículo está em movimento ou quando é submetido a esforços leves. Para suportar trabalhos mais pesados, o sistema recebeu baterias de lítio que entram automaticamente em operação para fornecer potência adicional.

Segundo o professor Zhao Chunjiang, responsável pela equipe de desenvolvimento, esse novo trator autônomo elétrico representa uma nova geração de máquinas agrícolas ecológicas e inteligentes parar ajudar a promover uma agricultura mais alinhada ao futuro.

“A área de pesquisa e desenvolvimento (P&D) está muito forte e o mundo está vivendo em função dela. No passado, a tecnologia dava grandes saltos a cada dez anos, depois diminuímos para cinco anos e, agora, tem sido praticamente anual. Isso me faz pensar que a médio prazo ainda teremos grandes inovações”, conclui o professor Lanças.

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