Por Joel S. Alves *
A mecanização da agricultura é irreversível. Se hoje colhemos supersafras, em boa parte, devemos isso à utilização de máquinas, sem as quais a fome campearia solta no planeta. Nesse cenário, o Brasil ocupa papel de destaque, inclusive na aviação agrícola. Já temos a segunda maior frota de aeronaves agrícolas do mundo, o que faz a diferença na hora de colher, principalmente quando trabalhamos com janelas de tempo cada vez mais curtas para aplicação de insumos e defensivos. Dois estados destacam-se no uso desse recurso: Mato Grosso e Rio Grande do Sul (permito-me um bairrismo: o meu Rio Grande), pois contam com empresas aptas a oferecer estruturas de aeronavegação e terrestres, aplicação dos insumos e até alguns tipos de sementes, sem esquecer, claro, da manutenção das aeronaves, com oficinas e hangares, que é o tema deste artigo.
Para abordar a manutenção é necessário conhecer o equipamento. A aeronave possui conjuntos mecânicos básicos: propulsor (motor e hélice), de célula (estrutura principal, superfícies de controle e trem de pouso) e dispositivo para aplicação dos produtos. Na qualificação do mecânico de manutenção de aeronaves, regulamentada pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), estão definidos os três grupos de especialização desse profissional: moto-propulsor, célula e aviônicos.
Conjunto propulsor
O conjunto propulsor inclui motor e hélice. No caso dos motores, há dois tipos: os convencionais (também identificados como motores a pistão ou alternativos) e os a reação (turbo-hélices). A maioria das aeronaves agrícolas possui motores convencionais, mas os turbo-hélices estão entrando firme no mercado brasileiro. Os motores convencionais são de seis cilindros horizontais dispostos três a três, ciclo Otto, com injeção mecânica de combustível e centelha por magneto duplo. O combustível é a gasolina de aviação, conhecida como AVGAS. Os motores são, na sua maioria, da marca americana Lycoming. A aeronave mais utilizada no Brasil é o modelo Ipanema, montado na brasileira Embraer sob concessão da americana Neiva.
Nesses motores, a hélice é fixada por flange e parafusos, diretamente no eixo virabrequim do motor, com passo variável controlado por um dispositivo chamado governador da hélice, e possui opção “reverso” que funciona como freio aerodinâmico após aterrissagem. Trata-se de um conjunto propulsor de simples manutenção e de larga utilização, cujas características são bastante conhecidas pelos profissionais de manutenção do meio aeronáutico. Há no Brasil várias oficinas homologadas para realizar reparos nesses equipamentos.
No caso do turbo-hélice, trata-se de um motor a reação, onde a força mecânica é produzida por uma turbina acionada pelos gases da combustão, portanto, não há movimento alternativo de pistões. O processo de combustão acontece de forma continuada, gerando grande quantidade de gases permanentemente e necessitando de centelha apenas durante a partida. A injeção de combustível é constante, assim como a admissão do ar. O combustível utilizado é querosene de aviação (JET A-1). A energia térmica e a força de expansão dos gases queimados acionam a turbina em alta rotação, acima de 30.000 RPM, a qual aciona o eixo principal do motor e este aciona a hélice por meio de um conjunto redutor de engrenagens.
O motor do turbo-hélice é mais simples, porém, exige maior precisão em seus componentes, pois trabalha com altas temperaturas e rotações. Na aviação agrícola brasileira predominam dois tipos de aviões com esse tipo de motorização: o Air Tractor e o Thrush, ambos de fabricação americana. São aviões ágeis e que suportam elevada carga de produtos. O motor predominante é o “PT6”, da marca canadense Pratt & Whitney – em alguns modelos o Thrush utiliza o motor GE e ainda o Garret-Honeywell, ambos americanos. A hélice é de passo variável controlada pelo sistema de governador hidráulico e com opção de reverso acionado pelo piloto.
Conjunto célula
Esse conjunto é composto pela estrutura principal da aeronave, a qual se divide em fuselagem, empenagem, asas, superfícies de controle, estabilizadores, além do trem de pouso. São fabricados em ligas metálicas leves à base de alumínio, tanto as longarinas da estrutura básica quanto as chapas que dão o formato aerodinâmico da aeronave. O trem de pouso possui as estruturas principais em aço. O avião agrícola é monomotor alojado na parte posterior da fuselagem. Entre o motor e a cabine do piloto situa-se o tanque (hopper) para depósito do produto a ser utilizado na aplicação. Os modelos maiores possuem hopper com capacidade de até 3000 litros. Os tanques de combustíveis são instalados na parte interna das asas.
O trem de pouso é duplo, posicionado estrategicamente próximo às asas e possui uma terceira roda pequena (bequilha) na parte traseira, embaixo da empenagem, e que serve de controle direcional para manobras no solo. Junto aos trens de pouso encontra-se o sistema de freios da aeronave. O dispositivo para aplicação do produto é de duas configurações básicas: para produtos líquidos e sólidos. Os líquidos necessitam de bomba, tubulação de distribuição e bicos de pulverização. A bomba é do tipo eólico, ou seja, o próprio deslocamento da aeronave produz a corrente de ar que aciona uma pequena hélice e a bomba que pressuriza o produto na tubulação, fixada por suportes junto às asas, e daí os líquidos seguem para os bicos. Muito mais simples que os sistemas usados nos pulverizadores terrestres autopropelidos. Para os produtos sólidos, os sistemas são mais simples ainda, pois necessitam apenas de um dispositivo espalhador aerofólio que utiliza a força aerodinâmica do ar junto ao perfil para arrastar e espalhar o produto. O controle é feito por uma abertura controlada junto ao tubo que liga o hopper ao dispositivo. Há ainda a opção de remover ou não a tubulação e os bicos do sistema para líquidos. Esse dispositivo é fixado na parte inferior da aeronave, um pouco atrás dos trens de pouso.
Alguns documentos de registro de manutenção aeronáutica:
Ordem de serviço (OS);
Ficha de inspeção anual de manutenção (FIAM);
Relatório de condição aeronavegabilidade (RCA);
Lista de verificação (checklist);
Ficha de inspeção (Tasks – tarefas de execução obrigatória);
Cadernetas de célula, motor e hélice;
Diário de bordo;
Etiqueta de aprovação de aeronavegabilidade;
Registro e aprovação de grandes modificações e grandes reparos;
Ficha de cumprimento de diretriz de aeronavegabilidade – FCDA;
Registro de documentos de aeronave reparada;
Comunicação de conclusão de reparo;
Registro de Revisão Geral (TBO – time between overhaul)
Laudo de avarias;
Relatório de reparos.
Realmente, são muitos os documentos e muitas as exigências de capacitação do pessoal técnico para execução dos serviços. São mecânicos credenciados com licenças expedidas pela Anac e inspetores registrados no Conselho Regional de Engenharia (CREA). Os documentos devem ser assinados pelos dois: mecânico e inspetor. A responsabilidade é grande e o piloto participa da inspeção de pré-voo.
Os serviços de manutenção a serem executados são bastante diversificados e mudam conforme o tipo, a marca e o modelo. Exemplificamos alguns itens da lista de verificação (pré-voo) do mecânico, nas revisões de 50 horas e 100 horas.
Checklist (pré-voo)
O checklist é um procedimento de rotina. Trata-se do primeiro passo da manutenção preventiva. O mecânico de aeronave é o primeiro a entrar em contato com o avião – talvez o primeiro a chegar ao hangar.
Ele deve verificar:
Trem de pouso: calibragem dos pneus, desgastes, condições das rodas e do dispositivo de frenagem;
Fuselagem, asas e superfícies de comando: aspectos de integridade (ranhuras ou amassamentos), superfícies de comando livres e ajustadas sem folgas, asas sem alterações dos perfis aerodinâmicos;
Motor: nível do óleo lubrificante, condições das correias e polias, condições das conexões e tubulações, presença de algum vazamento, cabos de acionamento e comando;
Hélice: condições das pás, presença de sulcos e arranhões, fixação do spiner;
Combustível: realizar drenagem dos tanques para retirada de possível presença de água.
Este é um check list básico, sendo que o piloto deve também verificar alguns itens em repetição e acrescentar outros. Tudo depende do tipo da aeronave, mas sempre há o que verificar, documentar e assinar.
Revisão de 50 horas:
Trem de pouso: limpeza e lubrificação dos pontos de articulação, condições dos pneus, sistema de freios; conexões, tubulações, pastilhas e discos, conjunto hidráulico de acionamento e nível do fluído do sistema;
Célula: condições de vedação da cabine, pára-brisa, portas e janelas; estrutura e fixação do assento do piloto; manche de acionamento, superfície de comandos, cabos, espias, roldanas, suportes, tensionadores e terminais; e mais itens de aviônicos, tais como sistema de orientação, navegação e de comunicação;
Dispositivo para aplicação dos produtos: condições do reservatório (hopper), fixação e condições da bomba de acionamento, válvula de controle e tubulações, teste do acionamento.
Motor: limpeza do filtro de ar e de todo conjunto de defletores do sistema de admissão de ar; substituição dos filtros de combustível, verificação das mangueiras e conexões de todo sistema de combustível; troca do óleo lubrificante e do filtro (atualmente alguns fabricantes indicam para 100 horas); magneto e conexões elétricas; bateria, cabos e conexões; todas as correias, tubos e mangueiras, e dispositivos de acionamento dos controles do motor e da hélice.
Revisão de 100 horas:
Estão incluídos todos os itens de 50 horas, e mais os seguintes:
Teste da compressão dos cilindros do motor;
Verificação e calagem (sincronismo) dos magnetos do motor;
Inspeção e teste de estanqueidade dos tanques de combustível;
Substituição do fluído de freio;
Lubrificação dos rolamentos das rodas;
Teste de estanqueidade do hopper.
Os itens citados são considerados procedimentos recorrentes na maioria das aeronaves agrícolas, porém, poderá haver outros ou, dependendo do modelo, alguns não se aplicam. Trata-se, portanto, de um referencial básico para entender o processo de manutenção preventiva dos aviões. À medida que aumentam as horas de funcionamento, as revisões também acompanham, assim há a revisão de 500 horas e a de 1000 horas, e mais as revisões anuais. É importante destacar que todos esses procedimentos devem estar descritos na OS (ordem de serviço) e serem assinados pelo mecânico credenciado e pelo inspetor. Parece complicado? Não muito, pois são rotinas simples e rápidas de serem executadas, desde que haja local adequado, ferramental e pessoas treinadas. Podemos afirmar com convicção que o avião agrícola é o futuro para uma agricultura cada vez mais pujante. Sua eficácia se encontra na rapidez e segurança na execução dos serviços.
Joel S. Alves é instrutor nas áreas de Operação e Manutenção de Máquinas e Implementos Agrícolas e Rodoviários *