Inteligência em campo

A transformação digital já está em andamento no Brasil e o setor de máquinas agrícolas tem sido um dos líderes nesse processo

 

* Por Fabrício Lira Figueiredo, Norberto Alves Ferreira, João Eduardo Ferreira Neto,  Catarina Gonçalves, Gustavo Correa Lima, Vitor Arioli e Aghatta Cioquetta Moreira

 

O foco em inovação e no desenvolvimento de tecnologias para a agropecuária tropical tem sido um fator relevante para o desempenho excepcional do agronegócio brasileiro nas últimas décadas. Nos próximos anos, novos desafios deverão acelerar ainda mais a transformação digital no campo, começando por setores como o de máquinas agrícolas – que representam parte importante dos investimentos e custos operacionais em culturas com elevado grau de mecanização. Nesse contexto, será necessário investir em tecnologias como Internet das Coisas (IoT), Inteligência Artificial (IA), Conectividade, Blockchain e Mobilidade Elétrica, entre outras.

A conectividade é um fator essencial para a utilização de várias dessas tecnologias. O Brasil possui um desafio substancial para viabilizar o acesso à internet em áreas rurais e remotas. A imensa extensão territorial, a diversidade de cenários, bem como o balanceamento entre oferta e demanda nos atuais modelos de negócios dos provedores de acesso, dificultam a viabilidade técnica e econômica de implantar e operar uma infraestrutura de conectividade com a abrangência e qualidade necessárias.

Um primeiro fator relevante diz respeito à infraestrutura para escoamento de tráfego de dados em alto volume no interior do País, via enlaces denominados “backhaul”. Cerca de 60% dos municípios brasileiros atualmente são atendidos por fibra óptica; os demais, por enlaces de rádio e satélite – vários deles em áreas rurais relevantes para o agronegócio.

No caso da infraestrutura de comunicações sem fio, esse cenário desafiador fica evidente quando se observa o mapa de cobertura das redes celulares: cerca de 70% das propriedades rurais do País não têm acesso à internet. Isso se deve a diversos aspectos, como barreiras econômicas e diversidade de domínios morfoclimáticos ao longo do território nacional.

A demanda por tecnologias de informação e comunicação no campo deverá crescer fortemente no cenário global – e no Brasil em especial. Mas, para viabilizar o aumento da oferta de soluções tecnológicas para o setor, será necessário ampliar a conectividade nas áreas rurais do País.

Algumas iniciativas nesse sentido têm surgido nos últimos anos, utilizando principalmente acesso via redes 4G. O licenciamento das bandas 450 e 700 MHz para todas as principais operadoras é um exemplo de política pública que contribui para a conectividade nas áreas rurais. Contudo, a disponibilidade de banda larga nessas áreas ainda é insuficiente.

Uma iniciativa relevante para enfrentar o desafio da conectividade no campo é a recente implantação de infraestrutura de rede 4G privada, baseada na tecnologia LTE 250 MHz, desenvolvida pelo CPQD em parceria com a São Martinho S.A., Trópico Telecomunicações e BNDES. Utilizando a faixa de frequência de 250 MHz, destinada ao Serviço Limitado Privado (SLP) pela ANATEL, a solução permite implantar células com raio de cobertura de dezenas de quilômetros, provendo mobilidade com qualidade de serviço e taxas de transmissão elevadas.

A Usina São Martinho, localizada em Pradópolis (SP), possui uma área de 135 mil hectares, que foi coberta com qualidade para transmissão de vídeo em tempo real, utilizando 10 Estações Rádio-Base LTE 250 MHz instaladas em 6 torres, com raios de cobertura acima de 40 km. Essa infraestrutura está sendo utilizada para coleta de dados em tempo real na operação agrícola da Usina São Martinho, por meio de terminais veiculares inteligentes instalados em colhedoras, tratores e caminhões que fazem o transporte da cana-de-açúcar. O sistema fornecido pela Trópico está sendo implantado em várias propriedades agrícolas (e em outros setores, como transporte e utilities).

Vale ainda destacar iniciativas como o Conectar Agro, associação liderada pela TIM com foco na tecnologia LTE 700 MHz para produtores rurais, e o SGDC (Sistema Geoestacionário de Defesa e Comunicações Estratégicas), satélite nacional que suportará serviços de telemetria em todo o território nacional.

No futuro, as redes 5G poderão ajudar a expandir a oferta das redes banda larga no campo, atendendo aplicações que necessitem de mais banda, menor latência, maior confiabilidade e maior densidade de conexões IoT. A disponibilidade de maiores taxas de transmissão aumentará a capacidade de transferência de imagens de alta resolução, por exemplo, permitindo que, por meio de tecnologias de visão computacional e analytics em nuvem, defensivos e fertilizantes sejam aplicados com maior precisão, reduzindo custos e impacto ambiental. A baixa latência e alta confiabilidade tornarão viáveis aplicações envolvendo drones e máquinas agrícolas autônomas, com suporte de algoritmos de IA. Já a conexão massiva IoT do 5G permitirá monitorar uma quantidade muito maior de sensores de microclima, solo, lavoura e animais, com a mesma infraestrutura.

Embora os potenciais de uso da tecnologia 5G no agronegócio sejam promissores, levar essa conectividade para o campo é um desafio global, em termos de viabilidade técnica, econômica e regulatória, especialmente no que tange à disponibilidade de espectro em frequências abaixo de 1 GHz, que proporcionam cobertura mais ampla.

Mobilidade elétrica

A necessidade de aumento da produção agrícola de uma forma ambientalmente sustentável deverá fomentar a adoção de tecnologias e soluções que contribuam para o uso racional de combustíveis, agrotóxicos e o incentivo à inovação. A introdução de maquinário elétrico, por exemplo, é uma forma de adotar práticas sustentáveis durante a produção agrícola, ao eliminar a emissão significativa de gases de efeito estufa gerada pela queima do diesel utilizado em caminhões, tratores e máquinas agrícolas.

A geração atual de veículos elétricos (VEs) agrícolas baseia-se no uso de baterias para alimentação de energia – o que promete redução de custos de operação e manutenção, maior segurança, redução de ruídos e consequente melhora na produção. Alguns fabricantes estão desenvolvendo tratores elétricos, com alguns modelos ou protótipos disponíveis em sua linha de produtos.

O princípio dos VEs considera que a energia elétrica armazenada em baterias seja utilizada de forma eficiente para alimentar todo o sistema de funcionamento do veículo. Dentre as químicas de baterias consideradas adequadas a essa aplicação, a mais promissora tem sido a de lítio-íon, bastante versátil devido à sua elevada densidade de energia. Em maquinário pesado utilizado em instalações agrícolas, o peso extra da bateria não deverá ser um fator impeditivo, podendo até ser benéfico por propiciar maior estabilidade e tração. Assim, é possível utilizar variações de químicas na bateria de lítio-íon mais seguras e de menor custo do que as utilizadas em VEs leves.

Entretanto, é importante ressaltar que existem barreiras para o uso massivo de veículos elétricos na agricultura. Uma delas é que as baterias não têm a densidade de energia de um modelo a diesel para realizar trabalhos no campo por longos períodos. As máquinas pesadas consomem quantidade maior de energia em relação aos veículos leves, logo a energia da bateria se esgotará mais rapidamente e o agricultor não pode esperar horas para a recarga. Espera-se, contudo, uma evolução tecnológica nas baterias – que já está acontecendo. Outra barreira é o custo atual das baterias de lítio-íon, que apresenta uma tendência de queda, além de contar com alguns incentivos governamentais para o uso de tecnologias sustentáveis.

Os maquinários movidos a eletricidade são mais eficientes em termos energéticos e mais econômicos, se comparados aos movidos a diesel, ao considerar sua vida útil e o preço da eletricidade, que é inferior ao do diesel. Considerando ainda fatores como geração de energia própria em fazendas e a menor dependência de estações de recarga públicas na operação agrícola, o cenário para a adoção de veículos elétricos no setor agropecuário é promissor.

A inteligência artificial

A busca constante por tecnologias e soluções que permitam aprimorar os diversos processos da operação agrícola é um fator importante para a transformação digital do setor. No caso de máquinas agrícolas, os processos de manutenção representam custos relevantes para os produtores e são campo fértil para a aplicação da Inteligência Artificial combinada com tecnologias como IoT e computação de borda, abrindo caminho para a era da “manutenção conectada”.

Para muitas empresas, a manutenção é realizada da mesma maneira há décadas. Quase todo ativo valioso possui um conjunto de recomendações sobre como manter o equipamento, com base em dados da área de engenharia do fabricante. Com a adoção de tecnologias de IoT, aliadas às abordagens e técnicas de IA, o gestor responsável pelo maquinário poderá minimizar perdas, ajustar processos e maximizar resultados. A descoberta antecipada de uma falha, por meio de algoritmos preditivos baseados em aprendizado de máquina, por exemplo, permite realizar ações visando evitá-la e garantir a confiabilidade e disponibilidade do equipamento.

No Agro 4.0, a manutenção prescritiva leva a preditiva um passo adiante. Modelos analíticos avançados apoiam a identificação de riscos de confiabilidade dos ativos que podem impactar a operação e, a partir do reconhecimento de padrões e regras predefinidas, identificam as ações e momentos para a atuação em um ativo – como, por exemplo, a troca de um componente eletrônico ou a limpeza imediata de um filtro de ar. Esse modelo pode se beneficiar da análise dos dados e IA para criar uma nova dimensão para o processo de melhoria contínua, correlacionando a base de dados de operação das máquinas agrícolas com dados meteorológicos e corporativos, por exemplo.

Face às dificuldades de conectividade no campo, cada vez mais se faz necessário poder detectar e tomar decisões locais, sem depender de uma inteligência centralizada. O avanço aí vem da distribuição de elementos computacionais de baixo consumo de energia e com alto grau de processamento, capazes de executar os modelos de decisão obtidos pelas técnicas de aprendizado de máquina. Esse conceito, chamado Computação de Borda (Edge Computing), abre as portas para a chamada Inteligência na Borda ou Edge AI. Acoplado às máquinas agrícolas, permite alto grau de automação nas decisões em campo.

O avanço da Inteligência Artificial integrada com IoT no campo tende a ser acelerado nos próximos anos, com algoritmos cada vez mais robustos e precisos, trazendo benefícios diretos para o negócio dos produtores em termos de redução de custos, ganhos de produtividade e sustentabilidade ambiental.

Tecnologia blockchain

Todos os produtos agropecuários passam pelo mesmo caminho até chegar ao consumidor: produção, processamento, empacotamento, distribuição e venda no varejo. Contudo, ainda é um grande desafio seguir o trajeto contrário, identificando como as propriedades do produto foram mudando em cada estágio da cadeia produtiva.

Para fazer a rastreabilidade ao longo dessa cadeia, é necessário coletar dados e informações dos diversos participantes, desde o produtor, fornecedores de insumos agrícolas, indústria, transporte até sua comercialização. Com o objetivo de integrar os atores dessa cadeia de produção, estabelecendo uma camada de confiança no papel de cada um, uma estratégia que vem sendo explorada pelas empresas mais inovadoras do setor é a criação de uma aplicação baseada em blockchain. Dessa forma, é possível rastrear todo o histórico de um ativo produzido no campo sem expor segredos de indústria, compartilhando as informações com consentimento e somente com quem for necessário.

Com a tecnologia blockchain, a rastreabilidade no campo para garantir a procedência e a qualidade do produto que chega às mesas brasileiras torna-se muito mais transparente – e facilmente verificável. É possível confirmar, por exemplo, se um produto oferecido no varejo como orgânico foi, de fato, produzido em uma fazenda com esse tipo de manufatura e sem a utilização de defensivos agrícolas. Além disso, ao conhecer a origem e o caminho que o produto percorreu, os envolvidos em sua cadeia produtiva ganham agilidade e precisão em caso de recalls, de modo a recolher e trocar apenas o necessário.

Um caso de sucesso é a rastreabilidade dos produtos da linha Suíno Sabor & Qualidade Carrefour Brasil, utilizando uma solução desenvolvida pela SafeTrace em parceria com o CPQD. Por meio de um QR Code, os consumidores podem ter acesso a informações detalhadas sobre as etapas de produção e distribuição dos alimentos, da fazenda até a chegada na loja.

Conclusão

A transformação digital está em andamento no Brasil e o setor de máquinas agrícolas tem sido um dos líderes nesse processo. Por outro lado, diante da necessidade de aumentar a produtividade com sustentabilidade, diversos desafios para a difusão em larga escala das tecnologias digitais no campo precisam ser enfrentados em ritmo mais acelerado. Fatores como a conectividade incipiente nas áreas rurais e remotas, aspectos regulatórios relacionados ao uso do espectro e à segurança de dados, disponibilidade de mão-de-obra qualificada no campo e políticas mais ousadas de investimento e fomento à inovação, dentre outros, representam ainda gargalos importantes a serem equacionados.

No entanto, as oportunidades são bastante promissoras para o agronegócio, com a introdução de novas tecnologias de conectividade, os avanços nas áreas de inteligência artificial, veículos autônomos, sensores inteligentes, identidade digital descentralizada, rastreabilidade segura de ativos, entre outras inovações esperadas para a próxima década. Esse movimento está avançando no País, apesar dos impactos da pandemia, como indica o crescimento das startups de base tecnológica do agronegócio – agtechs -, trazendo novas tecnologias a cada dia para o campo.

Nesse contexto, é fundamental ampliar as boas práticas de incentivo à inovação no setor, como as iniciativas do BNDES, EMBRAPII e FINEP, que oferecem linhas diversificadas de fomento e incentivos em modelos cada vez mais acessíveis. Aliando todo o potencial de criação e empreendedorismo já existentes com políticas adequadas de investimentos públicos e privados, a transformação digital do agronegócio poderá ser acelerada, contribuindo para ampliar ainda mais o protagonismo do Brasil no agronegócio mundial.

Referências

E mobility in agriculture: differences in perception between experienced and non experienced electric vehicle users. link: https://link.springer.com/content/pdf/10.1007/s10098-018-1615-2.pdf
Electrification of agricultural machinery: a feasibility evaluation
doi: 10.1109/EVER.2019.8813518
link: https://ieeexplore.ieee.org/abstract/document/8813518
Are Farmers Going Electric?
link: https://www.allelectricvehicles.com.au/blog/are-farmers-going-electric/
Electric powered farm vehicles set to revolutionise agriculture sector
link:http://www.impactlab.net/2019/08/03/electric-powered-farm-vehicles-set-to-revolutionise-agriculture-sector/,
Link: https://www.fendt.com/int/fendt-e100-vario
Link: https://www.nature.org/media/brasil/agricultura-sustentavel.pdf
Link:https://www.solectrac.com/
Link:http://www.anatel.gov.br/Portal/verificaDocumentos/documento.asp?numeroPublicacao=346858&pub=original&filtro=1&documentoPath=346858.pdf
Link:http://www.telesintese.com.br/3-225-municipios-brasileiros-tem-backhaul-de-fibra/
Link: https://conectaragro.com.br/index.html
Link: https://www.canalrural.com.br/noticias/agricultura/john-deere-apresenta-trator-autonomo-e-drone-gigante-em-feira-europeia/

 

*Fabrício Lira Figueiredo, gerente de Desenvolvimento de Negócios em Agronegócio Inteligente do CPQD
*Norberto Alves Ferreira, gestor de Soluções Sistêmicas de IoT e IA do CPQD
*João Eduardo Ferreira Neto, gerente de Desenvolvimento de Negócios em Inteligência Artificial do CPQD
*Catarina Gonçalves, líder técnico de Blockchain do CPQD
*Gustavo Correa Lima, líder da plataforma de Comunicações Sem Fio do CPQD
*Vitor Arioli, engenheiro do CPQD
*Aghatta Cioquetta Moreira, analista de desenvolvimento tecnológico do CPQD

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