Por Luciana Fleury,
Utilizado em quase todas as etapas da safra, desde a preparação das sementes até a nutrição das folhas das plantas adultas, o pulverizador tem funcionamento complexo e de grande impacto no resultado da lavoura, sendo responsável pela distribuição uniforme e adequada dos produtos que protegem a plantação contra pragas, doenças e insetos, e também de insumos que fornecem nutrientes necessários para o desenvolvimento adequado da cultura. O agricultor experiente sabe que são muitas as variáveis envolvidas na boa utilização de agroquímicos. São necessárias definições precisas de dose, volume de aplicação, cobertura, tamanho das gotas e pressão do sistema para que tudo saia a contento. É preciso, também, evitar a deriva – termo tecnicamente definido como o movimento do produto através do ar para fora do alvo durante a pulverização e que pode contaminar outros locais, lençóis freáticos e até populações próximas.
Todos esses cuidados podem ser perdidos diante de mau funcionamento do pulverizador que leve a variações do que é expelido pelos diferentes bicos, fazendo com que, na mesma linha de plantio, algumas plantas recebam a quantidade adequada de defensivo enquanto outras sejam pulverizadas de forma insuficiente e outras ainda sejam atingidas mais do que o necessário. O resultado são prejuízos financeiros e ambientais, problemas que se somam ao desafio de buscar uma produção sustentável, com o uso de produtos menos agressivos e em menor volume, frente ao aumento da resistência das pragas.
É exatamente por isso que as normas publicadas pelo CB-203 – Comitê Brasileiro de Tratores, Máquinas Agrícolas e Florestais da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) dentro dessa temática têm particular ênfase nos requisitos relacionados à deposição e distribuição do líquido sobre o alvo e na minimização do espalhamento involuntário de produtos no ambiente circundante. Um primeiro grupo de normas tem a ver com o equipamento que chega ao mercado ao estabelecer requisitos de projeto e fabricação. São os textos que compõem a ABNT NBR ISO 16119. A parte 1 apresenta padrões gerais para qualquer pulverizador, enquanto as demais partes abordam especificidades dos diferentes tipos de equipamentos. “No caso dos pulverizadores de barra horizontal, por exemplo, há a determinação de que os dispositivos de abastecimento sejam projetados de modo a evitar retorno de líquido do tanque à fonte de abastecimento, contribuindo para a segurança do processo”, comenta Leoni de Souza Leite, chefe de secretaria do CB-203.
A maioria dos fabricantes já atende às recomendações por seguir padrões internacionais. A versão nacional, no entanto, formaliza esses padrões no Brasil, conferindo transparência aos requisitos mínimos adequados a um pulverizador e dando ao agricultor um importante instrumento de validação para a decisão de compra, podendo questionar se o equipamento em questão foi fabricado de acordo com o especificado em Norma.
Padrões para inspeções
Enquanto a ABNT NBR ISO 16119 diz respeito aos fabricantes, outra norma, a ABNT NBR ISO 16112, está relacionada diretamente ao dia a dia do produtor agrícola, ao definir padrões para a inspeção de pulverizadores em uso. Os textos apresentados nas partes de 1 a 4 detalham componentes a serem periodicamente verificados, o desempenho esperado, percentuais máximos de desvios e variações toleráveis, além de descrever os ensaios previstos e como devem ser realizados. O objetivo é avaliar se o pulverizador continua funcionando do modo como foi originalmente projetado e identificar necessidades de manutenção preventiva. É uma questão importante, já que não há como aferir o desempenho no cotidiano. Mesmo que o equipamento aplique a totalidade do agroquímico desejado na área prevista, é impossível ter certeza, por exemplo, de que a distribuição se deu por igual. Um estudo de campo, realizado pelo pesquisador Marco Antonio Gandolfo em sua tese de doutorado defendida em 2001 pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), mostra a relevância da inspeção periódica.
Diante da ausência de padrões nacionais à época, Gandolfo criou uma metodologia para a identificação de falhas nos equipamentos de pulverização e, utilizando uma unidade móvel, que transportava os instrumentos necessários para as avaliações até as propriedades rurais, analisou 82 pulverizadores de barra horizontal. Os resultados mostraram que todas as máquinas apresentaram problemas. A maior frequência foi registrada no manômetro (90% das máquinas), seguida pelas pontas (81,6% das unidades) com coeficiente de variação de vazão oscilando entre 4,86% e 12,92%. Erros na taxa de aplicação e de dosagem ocorreram em mais de 80% dos equipamentos enquanto os vazamentos apareceram em 56,6% das inspeções.
Melhoria dos serviços
Gandolfo conta que, após a publicação do trabalho, empresas fornecedoras de defensivos agrícolas utilizaram a metodologia desenvolvida para oferecer serviços de inspeção nos pulverizadores de seus clientes, o que contribuiu para uma melhoria do quadro. Apesar disso e do fato de os últimos anos terem sido marcados por melhorias nos investimentos realizados no campo, a situação ainda é crítica. “Continuo acompanhando estudos sobre o tema e posso estimar que 50% dos pulverizadores em uso no Brasil apresentam falhas”, afirma Gandolfo, professor da Universidade Estadual do Norte do Paraná e CEO do Instituto DASHEN, entidade que, entre outras atribuições, oferece consultoria para cooperativas e empresas do agronegócio sobre qualidade em pulverização. Para ele, a publicação das normas é um grande avanço para a sustentabilidade financeira e ambiental do agronegócio.
A nova norma ajuda a padronizar serviços de inspeção como o Otimis Service, oferecido pela Jacto a clientes em um modelo iniciado como piloto em 2018. A proposta do serviço é verificar e testar o funcionamento de equipamentos e oferecer um laudo com orientações sobre o que precisa ser ajustado e uma listagem de quais peças devem ser substituídas. “Não acredito que a simples entrada em vigor das normas gere maior demanda de inspeções, pois é preciso antes um processo de conscientização. Nossos principais argumentos de venda são relacionados à redução de custo e eficiência operacional por uma aplicação sem desperdícios e de qualidade e disponibilidade do equipamento, evitando paradas imprevistas”, afirma Cristiano Okada Pompelli, gerente de negócios da Otimis. Segundo ele, a publicação das normas sobre inspeção não deve, também, alterar de maneira significativa a dinâmica utilizada pela empresa. “Já baseávamos nossa metodologia nos padrões internacionais, agora adotados nacionalmente, focando nos itens mais importantes para o bom funcionamento do pulverizador”, diz. “Estamos muito alinhados ao texto das normas, mas não totalmente, apesar de este ser o objetivo a médio prazo”. Como exemplo de item ainda não previsto no serviço prestado pela Otimis e preconizado em norma está a medição do ângulo do bico do pulverizador. “Outros ensaios garantem que, mesmo sem essa medição, o bico cumpra sua função de forma eficiente, por isso não identificamos isso como prioritário”, explica.
Regulamentação necessária
Importantes para a padronização de fabricação e condições de uso, as normas, no entanto, são de adoção voluntária, condição considerada não ideal pelo pesquisador Gandolfo. “A ausência de regulamentação que torne a inspeção obrigatória condiciona todo o sistema produtivo ao convencimento de cada produtor da importância de uma pulverização de qualidade, algo que leva tempo”, afirma. Para ele, a obrigatoriedade deveria ser acompanhada de fiscalização por parte dos órgãos públicos e da certificação de empresas que prestam esse tipo de serviço, acelerando a adoção de boas práticas e gerando benefícios ambientais e para a produtividade agrícola. Leite, do CB-203, destaca que a publicação dos textos não encerra o trabalho normativo. É preciso acompanhar as discussões para as atualizações, realizadas com os grupos de trabalho da ISO, necessárias para que os requisitos estejam alinhados à evolução do maquinário. Algo inclusive já sentido na atual versão, pois a versão internacional, base para as NBR mencionadas, data de 2013. “Há no mercado equipamentos com tecnologia embarcada não previstas nas normas. Em nossa linha há, por exemplo, um modelo automatizado que não usa manômetro, pois faz a medição por transdutor de pressão”, comenta Pompelli.