O trator hoje representa a base da mecanização agrícola e para tanto evoluiu e atingiu um elevado padrão de versatilidade e funcionalidade
por Jose P. Molin* – O trator, além de ser um veículo, é uma máquina dedicada e composta de mecanismos complexos, que transforma a energia do combustível em energia útil para a realização de operações com máquinas e implementos agrícolas e florestais. Constitui-se na principal fonte de potência da agricultura, mas somente se consolidou em torno de 100 anos atrás. Até então havia o predomínio absoluto da tração animal, também desafiada pelas máquinas a vapor no final do século XIX. Sem dúvidas, o trator hoje representa a base da mecanização agrícola e para tanto evoluiu e atingiu um elevado padrão de versatilidade e funcionalidade, permitindo o acoplamento e acionamento dos mais variados tipos de máquinas e implementos.
Conheça os principais modelos de tratores apresentados em 2023
Globalmente é sensível a sua evolução em aspectos como transmissão, motor e, mesmo, formato. No Brasil, nos últimos 20 anos, também evoluiu em quesitos relacionados ao conforto do operador. Outro item que repercute muito é a evolução tecnológica nos sistemas de rodagem, permitindo que o trator continue crescendo em potência, sem crescimento exagerado em suas dimensões externas e mantendo a versatilidade e manobrabilidade. Mas a questão mais contundente do momento é se ele continuará da forma como tem sido, ou se será substituído por novos conceitos de fonte de potência na agricultura.
Breve história do trator
A força humana foi a fonte de potência para a realização de operações agrícolas desde que o homem deixou de ser nômade. Em algum momento os animais passaram a exercer parte dessa tarefa e a tração animal chegou ao seu auge tecnológico no final do século XIX.
No final do século XVIII surge o motor a vapor, que dá início a uma longa história de grandes impactos nas civilizações, culminando com a Revolução Industrial. Essa, por sua vez, causou a necessidade de expansão da produção comercial de alimentos, pois o operariado não mais os produzia para a sua subsistência.
Em torno de 1850 já eram comercializados motores a vapor estacionários e portáteis e na sequência passaram à configuração de veículos, inicialmente dedicados à tração de carretas. Mas não tardou para que fossem direcionados para a aração (tracionando um arado), que sempre foi a operação mais demandante de potência na atividade agrícola. No final do Século XIX esse veículo a vapor disputava os espaços no mercado com a tração animal, dominante até então.
Na década de 1870 surge o motor de combustão interna, que chega na agricultura em torno de 1890, com o surgimento dos primeiros concorrentes daqueles veículos a vapor. Até então o termo trator ainda não existia e foi em 1906 que um fabricante desses veículos, já com motor de combustão interna, anunciou em um folheto de divulgação o seu novo modelo de tractor machine ou máquina de tracionar, que acabou se consolidando como tractor. Portanto, o nome é suficientemente autoexplicativo – trata-se de uma máquina de tracionar, fundamentalmente para exercer força de tração.
As primeiras evoluções
Aquela máquina de tracionar evoluiu rapidamente e passou a incorporar recursos que permitem ao trator exercer outras funções que não apenas a de tracionar. A mais impactante delas, em torno de 1919, foi a adição de uma extensão da árvore de manivelas do motor, que passou a ser denominada de tomada de potência (TDP). Assim passou a ser possível também o acionamento, além da tração de máquinas.
Mas as máquinas ainda eram arrastadas, acopladas à barra de tração. Uma solução mais prática, especialmente para a manobrabilidade e portabilidade das máquinas, surgiu com o desenvolvimento de um sistema de levante hidráulico juntamente com o conjunto de engate de três pontos, em 1935. Mas tudo isso ainda carecia de padronização de localização e dimensões, que foi acontecendo gradativamente nas décadas de 1940 e 1950.
Nesta evolução o trator se distanciou do automóvel como veículo, embora tenham surgido praticamente iguais. Até o final dos anos 1920 os motores dos tratores eram somente de combustão por centelha (ciclo Otto). A partir de então surgiram os motores de combustão por compressão (ciclo Diesel). Em 1933 foi introduzida a substituição dos rodados de ferro por pneus de borracha.
A partir dessa constituição e das demandas que o trator deve atender, pode-se fixar uma definição mais detalhada, estabelecendo que o trator deve permitir tracionar máquinas e implementos de arrasto através da barra de tração, tracionar e carregar máquinas e implementos montados através do engate de três pontos com levante hidráulico, bem como acionar máquinas estacionárias, rebocadas ou montadas no seu engate de três pontos através da árvore de tomada de potência (TDP).
Assim, é evidente que um trator para cumprir tais tarefas deve ser aquele que dispõe de barra de tração, TDP e engate de três pontos com levante hidráulico. Ao mesmo tempo, as evoluções nas máquinas e implementos, especialmente a partir da década de 1990, levaram à expressiva expansão do uso de potência hidráulica, o que fez com que o trator tivesse que expandir em muito a sua configuração de bombas e de circuitos hidráulicos.
Os tipos de trator
No início haviam variações de formato, que com o passar dos anos permitiram a consolidação de alguns tipos básicos de tratores. Até pouco tempo o tipo mais comum era o trator 4×2, caracterizado por ter rodado de quatro pneus, sendo os dois traseiros maiores e com garras, responsáveis pela tração. Os pneus dianteiros são menores e servem para apoio e esterçamento (dirigir). Esses tratores historicamente possuem uma distribuição de peso em torno de 70% no rodado traseiro e 30% no rodado dianteiro. Eles permitem ajustes de distância entre pneus em cada eixo (bitola) para adequarem-se aos espaçamentos de culturas em fileiras. Os tratores 4×2 recentemente se tornaram raros.
Na década de 1970, pela demanda por tratores maiores e mais potentes, se proliferou o conceito do trator 4×4, que tem um desenho diferente daquele que até então dominava o mercado. Este se caracteriza por ter rodado de pneus, sendo o traseiro e dianteiro iguais e com tração permanente nas quatro rodas. O peso é uniformemente distribuído entre os dois eixos e normalmente a direção é dada pela articulação do chassi. Por serem tratores maiores, foram concebidos para desempenhar operações de maior demanda de tração, especialmente preparo de solo; apresentam poucas ou nenhuma opção de ajuste de bitolas. Isso os caracteriza como tratores menos versáteis. Esses tratores chegaram a ser produzidos no Brasil na década de 1980. Hoje são oferecidos alguns modelos importados, de grande potência.
Na década de 1980 foi introduzido o conceito do trator 4×2 adicionado de uma tração dianteira auxiliar (4×2 TDA). Nada mais é do que o trator 4×2 com um rodado de tração também na dianteira, mas mantendo as proporções de pneus grandes na traseira e menores na dianteira. Essa tração auxiliar é de acoplamento opcional, normalmente acionada apenas em operações de maior demanda de tração. Os rodados dianteiro e traseiro, portanto, têm garras. A distribuição de peso é de aproximadamente 60% no rodado traseiro e 40% no rodado dianteiro.
O trator 4×2 TDA praticamente monopolizou o mercado brasileiro nos últimos anos e não é muito diferente no resto do mundo. Na década de 1990 os especialistas afirmavam que este tipo de trator não teria como ter potência muito maior do que 200 hp (147 kW) e, no entanto, no ano de 2015, na Alemanha, foi anunciado um modelo de trator 4×2 TDA com 500 hp (368 kW). Isso só é possível graças a um grande avanço na tecnologia de pneus, permitindo grande área de contato dos pneus com o solo para garantir a tração produzida por tamanha potência concentrada.
É um tipo de trator que consegue oferecer grandes potências e manter a sua versatilidade, com ajuste de bitolas, disponibilidade de engate de três pontos com levante hidráulico para grandes cargas e TDP. Além disso é compacto e de boa manobrabilidade.
O trator de esteiras representa outro grupo e surgiu ainda nos primórdios da história do trator. Para ser considerado agrícola ele deve ter os componentes básicos: barra de tração, TDP e engate de três pontos com levante hidráulico. Isso o difere do trator de esteiras para a construção civil.
As esteiras de borracha
A maior parte da indústria de tratores de esteiras aceitou o fato de que a tecnologia estava ultrapassada, mas uma empresa reagiu produzindo uma solução inovadora, que deu origem às esteiras de borracha. Trata-se de uma solução que praticamente contempla as grandes vantagens técnicas das esteiras de aço e solução para as limitações que estas apresentavam. Assim, a história do trator é marcada, em 1984, pelo surgimento da versão moderna do trator de esteiras, não mais metálicas e sim de borracha.
Se comparadas com as esteiras metálicas, as esteiras de borracha oferecem ao trator maior manobrabilidade, facilidade para o deslocamento, possibilidade de operar em maiores velocidades e maior conforto para o operador. Quando comparadas com os rodados de pneus, resultam em menor compactação do solo e maior eficiência tratória, o que implica em menor consumo de combustível por unidade de área trabalhada.
As esteiras de borracha evoluíram e hoje equipam diferentes tipos de tratores, incluindo os tipos 4×4 e 4×2 TDA e outros veículos agrícolas como colhedoras, pulverizadores autopropelidos e mesmo carretas com rodados sem tração. No entanto, seu uso no Brasil ainda é muito limitado.
Tipos especiais de tratores
Existe um sem número de modelos especiais de tratores para aplicações específicas, bem como de tratores conceito, não obrigatoriamente em produção. No Brasil, o destaque é para o microtrator de rabiças, popular em algumas regiões, especialmente na produção de hortigranjeiros e de arroz irrigado em pequena escala.
Trata-se de uma categoria realmente diferente de fonte de potência e que não tem os requisitos para ser enquadrado como trator. No entanto, é versátil e permite ser convertido de uma fonte de potência operada externamente (pelas rabiças) acionando complementos como enxada rotativa e roçadora e se transforma em um veículo quando acoplado a uma carreta.
Há também tratores tipo plataforma porta máquinas, de uso genérico como trator, mas também capazes de servir como fonte de potência e de acoplamento para máquinas especiais.
Esses tratores são completos em sua configuração como trator (com barra de tração, TDP, engate de três pontos) e ainda permitem configurações específicas como a montagem da cabine em diferentes posições do chassi. Também existem propostas de tratores com desenhos inovadores, como é o caso de tratores 6×6 ou até mesmo 8×8. Como são recorrentes nas feiras internacionais e nas revistas especializadas, é de se considerar que possa existir demanda para tais concepções.
Mercado de tratores
No Brasil, a história do trator ocorre no ano de 1960, a partir da instituição do Plano Nacional da Indústria de Tratores Agrícolas, em 1959, pelo governo federal. Até então os tratores aqui utilizados eram importados da América do Norte e da Europa.
A frota brasileira de tratores, antes dessa época, era em torno de 60 mil tratores. Com medidas de incentivo, o número de tratores no campo cresceu para algo como 800 mil unidades na década de 1990 e com tendência de estagnação desse número, mesmo coincidindo com a maior expansão territorial das lavouras. No entanto, isso acontece paralelamente à expansão da semeadura direta, que exige aproximadamente 30% da potência que era demandada numa mesma lavoura em que havia preparo periódico do solo. Outra razão está no aumento do tamanho dos tratores, com elevação expressiva da potência individual nos últimos anos.
Durante a década de 1980 a indústria nacional de tratores passou por períodos de longas crises, com expressivas quedas de vendas. Grandes mudanças marcaram a década de 1990, com a globalização da indústria e a consequente aquisições da maioria das empresas locais pelas transnacionais que hoje dominam o mercado. Passada aquela fase, o mercado anual passou a ser da ordem de 50 a 60 mil tratores.
Essa tendência é finalmente revertida, como indicado no último Senso Agropecuário do IBGE, de 2017, com crescimento da frota para em torno de 1,2 milhão de unidades. Uma das explicações plausíveis para esse fato é o impacto dos programas de incentivo à mecanização da agricultura familiar. Basta ver a quantidade de novos fabricantes e marcas de tratores de pequeno e médio porte no País, justamente atendendo às especificações desse perfil de mercado e regras dos programas de financiamento.
Evoluções recentes na história do trator
O trator segue evoluindo, agora na direção da automação. As primeiras soluções, na década de 1980, visavam facilitar a ação do operador; a cabine ainda era uma raridade. Foi assim que muitos comandos até então manuais, por alavancas e chaves, foram substituídos por botões, associados à popularização das cabines, que os protegem das intempéries. Na década de 2000, depois do surgimento dos sistemas de navegação global por satélites (GNSS), novas e importantes funções de automação foram adicionadas ao trator, em especial o sistema de direção automática (piloto automático).
Paralelamente evolui a comunicação entre a máquina e o gestor, também conhecida como “telemetria”, permitindo a transferência de dados gerados no ou pelo trator para a sede da propriedade, revenda ou empresa terceirizada de manutenção, permitindo assim a gestão otimizada da manutenção e do uso dos equipamentos.
Na medida em que o trator passa a ter itens de automação, muitos dos equipamentos por ele tracionados e acionados também evoluem e incorporam componentes da eletrônica. Isso demanda a comunicação entre ambos, que passa a ser tratada por um complexo protocolo na forma de uma norma (ISO 11783), também conhecida como ISOBUS, que tem o propósito de ser o padrão para essa comunicação de dados entre o trator e a máquina ou implemento, independente de origem, marca ou fabricante de ambos. No Brasil, essa norma está sendo gradativamente adotada pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), que é a entidade brasileira de normatização.
A atual onda de automação força inevitavelmente o trator a se tornar autônomo, com a tendência de exclusão da função do operador. Isso abre perspectivas para a revisão completa dos conceitos de projeto vigentes, o que envolve o seu porte e mesmo a sua existência. As máquinas auto propelidas surgiram e vêm expandindo de forma acelerada. Diante desse breve relato sobre a história do trator, é plausível, portanto, questionar se o trator continuará dominando como fonte de potência e qual será o seu tamanho ideal.
*Jose P. Molin é professor titular do Departamento de Eng. de Biossistemas USP/ESALQ, Piracicaba; Laboratório de Agricultura de Precisão; www.agriculturadeprecisao.org.br
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