Programa nacional RenovaBio tem transformado a produção de cana-de-açúcar e do setor de biocombustíveis como um todo, constituindo um importante vetor de sustentabilidade na redução das emissões de gases de efeito estufa
por Ana Machado – O Brasil é o maior produtor mundial de cana-de-açúcar, com uma fatia de 40% do mercado global. Na última safra (2022/23), foram processadas cerca de 607 milhões de toneladas. Ao todo, são 360 unidades produtoras em atividade atualmente no País, concentradas principalmente na região Centro-Sul. Essa grande cadeia sucroenergética fatura mais de R$ 90 bilhões por ano, com uma participação de 2% no Produto Interno Bruto (PIB) nacional.
Com números tão expressivos no agronegócio, a cana-de-açúcar se tornou a principal matéria-prima para a geração de energia renovável do País, que corresponde atualmente a mais de 15% da matriz nacional. Não à toa, o Brasil ocupa o primeiro lugar na produção de bioetanol, com 28 bilhões de litros ao ano, e se destaca com a maior frota de veículos flex.
As bases para esse resultado foram lançadas ainda na década de 1970, com o Programa Nacional do Álcool, o Proálcool, considerado pioneiro quando o assunto é biocombustível. Lançado naquela época com o objetivo de reduzir a dependência das importações de petróleo e derivados, o governo ofereceu diversos incentivos para o setor sucroenergético, o que gerou um aumento da área plantada de cana-de-açúcar, além da criação de novas unidades produtoras de etanol.
Incentivo à descarbonização
A partir da experiência brasileira, diversos países também passaram a estimular a inserção de biocombustíveis em suas matrizes energéticas, com o intuito de reduzir as emissões de gases de efeito estufa (GEE) e a dependência dos combustíveis fósseis. Por aqui, esse estímulo ficou ainda mais forte a partir do compromisso assumido pelo Brasil no âmbito do Acordo de Paris, em 2015.
Dessa forma, o governo federal lançou no ano seguinte a Política Nacional de Biocombustíveis, mais conhecida como RenovaBio. Ela estabelece metas anuais de descarbonização, incentivando o aumento da produção e da participação de biocombustíveis na matriz energética do País.
Uma das grandes inovações do RenovaBio foi a criação dos Certificados de Redução de Emissões de Carbono, que funcionam como uma forma de compensação e reconhecimento das empresas que contribuem para a redução das emissões de carbono.
Esses certificados são concedidos pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) aos produtores e importadores de biocombustíveis, que se tornam aptos a emitir o Crédito de Descarbonização (CBIOs). Dessa maneira, quanto maior a eficiência e a redução de emissões, maior é a quantidade de CBIOs que a empresa pode emitir.
Na metade deste ano, o RenovaBio atingiu a marca de 100 milhões de CBIOs emitidos desde o seu pleno funcionamento, em 2020. De acordo com Renata Camargo, gerente de Sustentabilidade da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), desse montante, aproximadamente 85% dos CBIOs têm sua origem no setor sucroenergético.
Produção mais sustentável
“Nas últimas décadas, o setor sucroenergético se transformou em exemplo de eficiência ambiental para muitos segmentos da economia nacional e até internacional. E essa eficiência se percebe claramente quando falamos de reaproveitamento de resíduos do processo produtivo. Do bagaço, temos energia; da vinhaça, temos fertilizante orgânico e biometano ou biogás; da palha, temos a recomposição e proteção do solo; da torta de filtro e das cinzas e fuligem, temos uma rica mistura para adubação do solo. Mas a coisa não para por aí. Se pensarmos nos novos produtos, do bagaço e da palha, já temos hoje em dia o etanol de segunda geração. Além disso, vale lembrar o fortalecimento da indústria de bioplástico e de combustível de aviação sustentável”, pontua a executiva da Unica.
Segundo ela, como as boas práticas de manejo têm reflexos na nota de eficiência energética do produtor, o intuito do programa consiste no incentivo a um processo de produção com menor intensidade de carbono, além de ampliar a economia circular na cultura da cana.
“Podemos citar como exemplo a substituição de fertilizantes químicos por opções orgânicas, ou mesmo pela própria fertirrigação com vinhaça, que proporciona menor emissão de CO2 e reduz o consumo de água. A vinhaça, alternativamente, ainda pode ser utilizada para produção de biogás para consumo energético da própria usina ou para venda no sistema de distribuição, processo que também prevê a emissão de CBIOs”, explica Renata.
A eliminação da queima como método agrícola pré-colheita é outro exemplo tanto de redução de emissões de CO2 quanto de maior eficiência no consumo de água, uma vez que houve a descontinuidade do processo de pré-lavagem da cana-de-açúcar.
Na etapa agrícola, Renata ressalta o investimento em variedades de cana-de-açúcar mais produtivas e que exigem menos quantidade de fertilizantes, bem como a renovação da frota de máquinas e equipamentos agrícolas por modelos mais eficientes, que inclusive utilizam menos diesel ou foram projetados para o uso de energia de fontes renováveis (como o próprio etanol ou biometano).
Já na fase industrial, a especialista em gestão ambiental aponta que as usinas têm buscado expandir ou otimizar as unidades de cogeração de bioeletricidade, tanto por meio do bagaço da cana-de-açúcar, quanto por meio da biodigestão da vinhaça para posterior produção de biogás, biometano e bioenergia.
“Todas essas iniciativas geram um efeito positivo sobre a intensidade de carbono do etanol produzido, mas também permitem abastecer o mercado de energia com uma fonte renovável, diversificando a matriz e contribuindo para garantir o abastecimento e a segurança energética nacional com eficiência”, diz Renata.
Descarbonização na prática
Um estudo realizado em parceria entre Universidade de Campinas (Unicamp), Agroicone e Embrapa Meio Ambiente avaliou a dinâmica de ocupação da terra pelo cultivo da cana-de-açúcar no Centro-Sul e Norte do Brasil, entre 2000 e 2020. O levantamento mostrou que somente 25% da área de cana existente atualmente já era cana em 2000. No entanto, o acréscimo de 6,1 milhões de hectares de cana, identificado nesse período, veio de conversões de áreas que, anteriormente, eram pastagens (60%), culturas anuais (16%) e mosaicos (22%) – ou seja, áreas que poderiam reunir agricultura e pastagem. Apenas 1,6% da expansão de cana ocorreu sobre áreas de vegetação natural.
Conforme a pesquisa, esse padrão de conversão do uso da terra, associado à troca de tecnologia de cana-queimada (fogo na colheita) para cana-crua (com manutenção da palha em campo), contribuíram para que as áreas cultivadas com cana fossem responsáveis pela remoção líquida de aproximadamente 9,8 milhões de toneladas de CO2 por ano da atmosfera.
Quando considerada a propriedade agrícola como um todo, e não só a área cultivada com cana-de-açúcar, a remoção líquida foi de 17 milhões de toneladas de CO2 por ano, principalmente devido à manutenção da vegetação natural e ao aumento de formações florestais naturais nestas propriedades.
Ao considerar apenas as áreas cultivadas de cana, a quantidade de carbono removida (9,8 MtCO2/ano) acumulada nos 20 anos avaliados representa uma remoção total de 196 MtCO2. Segundo os pesquisadores, isso seria equivalente a plantar 1,4 bilhão de árvores, o que ocuparia uma área superior a um milhão de campos de futebol.
Novo passo rumo à sustentabilidade
Na última edição da Fenasucro, a principal feira de bioenergia do País, a Associação dos Plantadores de Cana do Oeste do Estado de São Paulo (Canaoeste) apresentou um projeto que pretende impulsionar ainda mais o setor sucroenergético em direção a uma produção mais sustentável.
Trata-se de uma fábrica de insumos biológicos, a CanaoesteBio, que está desenvolvendo inseticidas feitos a partir de microrganismos, materiais vegetais, orgânicos ou naturais para serem utilizados tanto no combate de pragas nos canaviais quanto na melhora da fertilidade do solo e da disponibilidade de nutrientes para as plantas.
De acordo com o André Volpe, gestor da CanaoesteBio, os agrônomos regionais da entidade já acompanhavam os produtores associados que usavam insumos biológicos em seus manejos. A partir dessa experiência em campo, foi montada uma rede de experimentação há mais ou menos um ano, quando a biofábrica ainda estava em construção.
“Já estamos trabalhando internamente para levantar os resultados e verificar como vamos posicionar esses produtos na estratégia de manejo dos nossos associados, tudo para ter mais confiabilidade e segurança nas nossas recomendações”, afirma Volpe.
Somente os associados da Canaoeste terão acesso a esses insumos biológicos, que vão ser oferecidos aos interessados por meio de um sistema de cotas. Cada associado terá direito aos produtos de forma proporcional ao tamanho da área de cultivo. E a produção dos insumos vai se dar de acordo com demanda para cada época de sazonalidade das pragas.
“A Canaoeste vai orientar e acompanhar toda a aplicação desses produtos no campo, além de fazer treinamentos para que esses manejos sejam realizados nas melhores condições para o uso dos defensivos biológicos”, explica o engenheiro agrônomo.
Segundo ele, os insumos biológicos podem ajudar nos processos de certificação, seja do RenovaBio ou de outros programas, como o Bonsucro, por exemplo. “A Canaoeste tem um programa interno que se chama Semeia, cujo objetivo é incentivar boas práticas agrícolas e também certificações. Ele é multidisciplinar, então a equipe trabalha diversos fatores para preparar nossos associados para obter a certificação do Bonsucro. Nesse sentido, o uso de produtos biológicos é muito bem-vindo, porque nessa certificação há um limite de 5 kg por hectare ao ano de ingrediente ativo químico. Os insumos biológicos não entram nessa conta, porque eles são de baixíssimo impacto ambiental e baixíssima toxicidade, com uma segurança muito boa para manuseio – fatores que vão muito ao encontro do que buscam esses programas de certificação, agregando mais sustentabilidade ao processo agrícola como um todo”, enfatiza.
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